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Um olhar sobre o Mundo

Porque há muito para ver... e claro, muito para contar

Porque há muito para ver... e claro, muito para contar

Um olhar sobre o Mundo

29
Set10

Para Igor o limite é o céu

olhar para o mundo

Quando era mais pequeno, Igor Ferreira tirava a roupa ao Action Man e fazia-o voar por cima da sua cabeça. Só tem 12 anos, mas um dia, quando for grande, quer voar como só gente grande sabe voar – quer ir para a NASA (Agência Espacial Norte-Americana). “Fascina-me tudo sobre o espaço. Quero ser astronauta – e escritor nos tempos livres.”

Rosália, a mãe, transpira orgulho. Chama-lhe “obra-prima” – a sua obra-prima. No 5º ano, o rapaz figurou no quadro de honra da escola. Teve cinco em todas as disciplinas, menos em Educação Física. No 6º ano, as notas baixaram um bocadinho. Um rufia desatou a implicar com ele.

A mãe tentou consertar tudo muito depressa, não fosse aquela experiência negativa comprometer o presente ou o futuro do seu filho: “O miúdo é muçulmano. Eu não podia falar com a mãe dele – ela anda toda enrolada num lençol. Eu falei com o pai dele, mas não se pode [contar com ele]. O diabo do homem deu umas lambadas ao miúdo. O miúdo ainda ficou mais revoltado!”

A violência não é uma realidade desconhecida, distante. Igor mora no Aleixo, um bairro batido pelo tráfico de droga e que a Câmara do Porto há dois anos decidiu deitar abaixo. E o que é o Aleixo? “De certa forma, é um bairro normal. A diferença está nas pessoas que lá vivem. Às vezes, andam lá a gritar umas contra as outras durante a noite”, resume o rapaz. A mãe também ouve: “Às vezes, vamos a subir as escadas e vemos polícia com armas apontadas.”

Um Action Man humano

Não se deixa contaminar pela desmotivação que semeia absentismo e abandono escolar no bairro: “Só estou lá quando estou em casa. E a minha casa não é o meu bairro. A minha casa é mais pequena do que aquilo tudo.” Passa grande parte dos seus dias fora daquelas cinco torres de 13 andares erguidas na década de 1970, como uma agressão à paisagem, ali, perto do lugar onde o Douro desagua. Sai por volta das 8h00 para entrar nas aulas às 8h25. Pratica judo às segundas, quartas e quintas e natação às terças e quintas.

Frequentou o 1º ano em Lordelo, como outros meninos do bairro. Lembra-se disso: “A professora faltava muitíssimo. Às vezes, não faltava ela e faltava eu a pensar que ela não vinha. Ela fazia-me perder tempo. Passei para o 2º ano sem saber ler nem escrever.” Mudou de escola. “Consegui aprender a ler. Leio muito. Quando mais me esforçava, mais gostava.”

A mãe fez tudo para o livrar das escolas de má fama. Deu uma morada de uma conhecida para o pôr na EB1 São João da Foz. Quem estuda ali transita para a Francisco Torrinha no 5º. Fez lá o 5º. No 6º foi para a Pires de Lima, que dá acesso à cotada Aurélio de Sousa. Depois, o rufia caiu-lhe em cima.

O que fazia o tal rapaz? “Violência física não. Lembro-me de numa aula de música ele estar a fazer barulho e de eu olhar para ele e de ele me puxar o cabelo. Quando eu olhava para ele, ele fazia caras de parvo e berrava nos meus ouvidos. Ele tem dupla personalidade. Parece um santinho e faz isto.” Rosália mudou Igor para a Pêro Vaz de Caminha.

Uma criança tem direito a estudar e a sonhar com um futuro. Igor estuda muito e sonha com viagens espaciais e com escrita criativa: “Gosto de inventar histórias. Leio tantas histórias que consigo inventar. Quero escrever ficção. Gostava de lhe juntar mistério, ciências. Sei que tenho de estudar muito. Se for preguiçoso, tenho sorte se chegar a trolha.”

Gosta da escola nova. “Tem um bom ambiente. Os professores também são simpáticos. Ensinam melhor. Uns professores dão a matéria atabalhoadamente, não se importam se os alunos aprendem ou não; os dali ensinam bem.” Não tardou a tornar-se o melhor aluno da turma.

Fala como gente grande, mas não larga o Action Man. Em Novembro, acontece sempre qualquer coisa ao herói – há uma perna ou um braço ou um pescoço que se parte. No Natal, a mãe oferece-lhe um boneco novo e o rapaz hesita – habituado que está ao “amigo velho”. Adora anatomia, o ramo da biologia que estuda a estrutura e a organização dos seres vivos. E o Action Man é, dos bonecos que conhece, “o que tem a forma mais humana”.

Livro atrás de livro

Gosta de Ciências: “Quero saber de planetas, de animais, de plantas.” Gosta de História: “Gosto de saber o que aconteceu antes para termos o que temos.” Gosta de Português: “Quanto mais vocabulário tenho, mais gosto de Português. Quando encontro uma palavra que não conheço, vou directo ao dicionário.” Gosta de tanta coisa, tanta que às vezes é difícil escolher.

Passa as tardes de sábado na Biblioteca Municipal Almeida Garrett, nos jardins do Palácio de Cristal, uns dos mais belos do Porto. A sua escritora favorita é Luísa Dacosta. Viu-a no ano passado e até lhe pediu para autografar o seu exemplar de Sonhos na Palma da Mão. Não perde um livro da colecção Arcanus, obra de Care Santos sobre 12 miúdos com poderes especiais. E está a começar a fazer o mesmo com A Saga de Deltora, de Emily Rodda.

Dentro do quarto de mobília escura – que partilha com a mãe no apartamento que acolhe também a avó e a bisavó – não parece caber nem mais um alfinete. Amontoam-se livros e DVD nos móveis aos pés da cama, atrás da televisão e da PlayStation, transbordam para os arrumos.

À noite, a mãe testa-o: “Eu faço-lhe perguntas e ele responde. Também pode falhar algumas coisas.” Sem deixar de ser a obra-prima dela: “Ele consegue ser mais correcto do que eu.” A mãe dá um exemplo: “A avó paterna é muito pelo pai. Ele não paga mensalidade e ela defende-o. Eu disse: “Oh! Vou insultá-la.” E ele respondeu-me: “Ó mãe, comportamento gera comportamento.”"

Ana Cristina Pereira
Público
28/09/10

 

Via meninos de ninguém

18
Set09

Ninguém disse que seria fácil

olhar para o mundo

 

 


Há trabalhos tão duros que não deviam ser feitos por ninguém. Ou então proporcionariam tais regalias sociais e económicas que haveria sempre quem os fizesse de bom grado, desincentivando a compaixão dos restantes.
Mas o Mundo não é justo e a realidade não se compadece dos meus sonhos. Talvez por isso, quando vejo homens que podiam ser meus pais a fazer certos trabalhos, invadem-me as lágrimas, comprime-se-me o peito, e nessas alturas acho que sou demasiado mole para andar nas obras.
Não são os horários alargados que me quebram, não é a lama que me afunda, nem o frio que me gela ou o calor que me sufoca. São estas pessoas a quem a vida espancou em vez de pregar sermões, é esta miséria humana transformada em esforço físico. São estes farrapos de homens que transportam nos braços a força do dinheiro que nem é muito ao fim do mês. São estes corpos enlameados, estas caras cansadas onde o suor vai escorrendo na pele sulcada pelas rugas.
São trabalhos duros. Tão duros que me endurecem o coração.

Na maioria dos dias centro-me no meu trabalho, tenho tantas coisas em que reparar: aço, betão, equipamentos. Olho para eles mas não os vejo, ignoro os corpos amarrotados pela vida. Não interiorizo aqueles gestos, ignoro o peso das enxadas, finjo não ouvir o som dos martelos pneumáticos, transformo o pó em simples ar. 
Mas noutros dias deixo-me levar pela pessoa que sou fora daqui e páro uns minutos a olhar para cada gesto, para cada expressão. Para eles.
Eles, que ao fim do dia, de rostos desfeitos, são amontoados em carrinhas que os despejam em casa horas mais tarde, depois de pararem em todos os apiadeiros. Eles, que mesmo sabendo que mal têm tempo para dormir e descansar o corpo, se agarram à promessa de uma vida melhor ainda que não tenham a certeza de lá chegar com forças para a viverem.

Nos dias em que dou por mim a pensar em tudo isto, apetece-me chorar e enfiar-me no Mundo cor-de-rosa onde vivem as outras pessoas.
Não tenho o corpo dorido mas não imaginam como às vezes trago a minha alma.

Há quem diga que todos somos filhos de Deus. (Eu sei que) Quem o diz não sabe do que fala.
 
 

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