Já ninguém sonha com ser hospedeira de bordo
Amália Bastos, 65 anos, 37 a voar como assistente de bordo, ainda é do tempo em que não havia carrinhos de refeições a deslizar pela cabine e tinha de carregar 120 bandejas à mão, com pratos em pirex e outros utensílios em inox, para servir os passageiros. Se o transporte de comida era mais pesado, em compensação não sabia o que era o sistema "night stop". Voava-se menos horas, havia tempo para recuperar do jet lag e conhecer os destinos. "Hoje quase não se fica em Nova Iorque 24 horas. No meu tempo, tínhamos de ficar lá pelo menos duas noites, por uma questão de saúde e de segurança."
Apesar da perda de regalias e de reconhecer que, dificilmente, um tripulante de hoje "consegue voar durante 37 anos", Amália Bastos confessa com nostalgia que, não fosse o marido estar doente, "de certeza que ainda iria voar": "Ainda tenho bom aspecto e não me importava nada de estrear outra farda."
A ex-assistente de bordo já viajava pela TAP na altura em que crianças e adolescentes repetiam em coro: "quero ser hospedeira quando for grande." Ser assistente de bordo era, para o imaginário adolescente, sinónimo de beleza e de viagens pagas. Uma hospedeira de bordo era uma espécie de Barbie de trolley na mão, a sacudir-se em cima de saltos altos pelos aeroportos, cheia de graça, impecavelmente maquilhada e vistosa, cabelos longos apanhados em rabo de cavalo, mais viagens a destinos de sonho, com direito a estadia em hotéis de cinco estrelas. Os filmes - como o "007- Missão ultra-secreta", em que Roger Moore na pele de James Bond confessa que só se casaria se fosse com uma hospedeira- ajudavam a construir o romance. Agora, hospedeiras e ex-hospedeiras são as primeiras a assumir: a profissão perdeu o glamour.
A competição desenfreada entre companhias de aviação, o stresse de estar sempre em stand-by e poder ser chamado a qualquer hora para viajar, e o permanente jet-lag transformaram a profissão de sonho numa correria desgastante entre casa, hotéis e aeroportos. As novas regras de segurança pós-11 de Setembro atrasaram a entrada e saída dos aeroportos: assistentes e comissários são hoje tão inspeccionados como o comum dos passageiros. As promoções e as viagens a baixo preço das companhias low-cost e a possibilidade de pagar viagens a prestações disponibilizada pelas agências tornaram acessível o que antes era apenas um privilégio das hospedeiras ou dos mais ricos.
mito Maria Guerreiro tinha 23 anos e ainda se lembra de entrar numa sala e ser confrontada com nove pessoas a olhar para si e a avaliá-la. Entrar na profissão era mais difícil: "Abriam cursos para entrarem 20 pessoas, no ano passado entraram 500." O romance à volta da profissão era tal que todos acabavam por chamá-la sortuda quando descobriam que tinha deixado de ser professora primária para ser assistente de bordo. "Pensavam mesmo que a nossa profissão era passear." Em resposta, Maria Guerreiro, hoje chefe de cabine do médio curso, via-se obrigada a desmistificar. Ser tripulante da aviação civil não era um passaporte para viagens turísticas: muitas vezes nem saía dos aviões ou só tinha tempo para aterrar na cama de hotel e repetir as rotinas no aeroporto no dia seguinte.
Há 22 anos a acompanhar no terreno a evolução da profissão, Maria Guerreiro não duvida que "esta já não é aquela profissão de sonho que todas as raparigas desejavam ter". Até o aprumo mudou. "Agora trabalha-se tantas horas - numa semana chego a fazer 50 horas - que já nem nos conseguimos arranjar na perfeição." Entre risos abafados pelo telefone, confessa que não é fácil para quem foi treinada para ser a imagem da companhia no aeroporto, a bordo e nos hotéis: "Na última viagem parti uma unha e como não tinha tempo para a arranjar, tive de pôr um penso."
Profissão a quanto obrigas Nos anos 60, os concursos para assistente de bordo obrigavam a saber pormenores sobre a mecânica do avião, medicamentos e suas finalidades de cor e salteado e até as rotas. "Se errássemos, éramos tratadas como meninas de escola", recorda Amália Bastos. Na imagem, nada podia ser descurado. Tudo era avaliado na sala de briefing, onde era feita a apresentação antes do voo. Ter sempre um sorriso no rosto era importante, mas ser bonita e sensual dentro do uniforme não o era menos. Amália Bastos perdeu a conta a quantas vezes a mandaram saltar para cima da balança para ser pesada e nunca esquece o dia em que a mandaram para a casa-de-banho porque não tinha a maquilhagem adequada. As unhas tinham de estar sempre pintadas, o batôn tinha de se ver ao longe, a maquilhagem tinha de ter o tom e a dose certa, o cabelo não podia ultrapassar a linha do ombro.
Maria Guerreiro admite que vida de assistente de bordo nos anos 80 e hoje são incomparáveis. Mas há momentos que valem o esforço e pelos quais "já não seria capaz de viver de outra maneira". Um deles é o que a acorda todas as manhãs: o homem que viajava pela primeira vez de avião e, no final do voo, colocou-lhe 50 escudos às escondidas no bolso.
Via ionline