Podia ser uma prova do Guinness. Em apenas doze segundos coma doze passas, enquanto visualiza outros tantos desejos. Para bater tudo certo, cada passa é comida no respectivo segundo. Sem enganos. Num nível mais avançado, faça isso enquanto sobe para uma cadeira e no último segundo salte com o pé direito. Aceita o desafio? Em noite de réveillon são muitos os portugueses que respeitam religiosamente estes rituais. Tudo em nome de um novo ano cheio de sorte. Segundo um inquérito da Marktest, de 2006, a maior parte da população respeita estas superstições. Apenas 30% respondeu não ter nenhum ritual.
Ninguém sabe muito bem quando começaram estas tradições ou até o que simbolizam. "Não é possível descobrir o ano exacto em que começaram. O interessante é perceber que o significado genérico destes costumes mantém-se. Há 50 anos os gestos não seriam os mesmos, mas o sentido era", explica o antropólogo Francisco Vaz Silva.
Há rituais para todos os gostos. Os mais corajosos mergulham no mar gelado e em tempos atiravam-se pratos e tachos velhos pela janela. Uma moda lisboeta dos anos 50 e 60, que acabou tal não era o caos que causava. O investigador Francisco Vaz Silva refere ainda que uma das tradições mais antigas é fazer barulho. Tem origens anteriores ao Império Romano. Quando havia um eclipse, toda a gente fazia barulho para afastar o perigo de o sol não voltar. Descubra o que o seu ritual significa.
Porquê 12 passas e não cinco pinhões?
Há pessoas que não suportam a textura das passas ou o seu sabor, mas no dia 31 de Dezembro lá ficam com a mão cheia de uvas secas e desejos por pedir. Para esta superstição há muitas explicações. Que cada passa simboliza um dos meses do ano é a mais óbvia, mas o antropólogo Francisco Vaz Silva aponta outra. “O nosso calendário é o solar, mas o lunar também é usado. Como tem menos 12 dias, no último mês acertavam-se as diferenças. As passas simbolizavam esses dias.” Há ainda outro simbolismo. “Os dias acrescentavam-se a partir de 26. Logo, a noite de ano novo ficava no meio desses dias. Nas aldeias até se costumava dizer que esses 12 dias simbolizavam o clima que se ia sentir nos meses do ano seguinte. Se a 26 chovesse (o primeiro dos 12 dias), Janeiro ia ser um mês de chuvas e assim sucessivamente.” O facto de se usar passas deve-se à popularidade do fruto nesta altura do ano. Mas o antropólogo Manuel João Gomes vê ainda outro simbolismo. “Em rituais antigos, as passas eram o substituto do vinho, o que acaba por ser uma referência a Cristo, mesmo que indirecta.”
Ano novo, dinheiro na mão
É fácil perceber o porquê: todos queremos mais dinheiro. Mas a primeira referência à tradição de tocar em moedas como sinal de boa sorte surgiu no século XIX. O dia do cuco provavelmente não lhe diz nada, mas era uma tradição nacional. A data simbolizava o começo da primavera, já que quando se avistava esta ave migratória, normalmente a 21 de Março, era a época das colheitas começarem a florescer e das flores desabrocharem. O que num país agrícola é sempre importante. Foi então que nasceu um ritual e uma espécie de competição. “A primeira pessoa a avistar um cuco devia pôr a mão no bolso e se encontrasse dinheiro era sinal de que ia ter um ano de riqueza e tinha de avisar os outros”, recorda o antropólogo Francisco Vaz Silva.
Roupa nova azul, vermelha, amarela… Qual é a cor certa?
A ideia é simples. O ano acabou e convém deixar tudo o que está pendente terminado, por isso nada melhor do que ter roupa nova. Ano novo, vida nova. “A noção de que os nossos actos de ano novo são o reflexo do que queremos é muito frequente”, explica Francisco Vaz Silva. Quanto às cores, terá sido uma importação que não se sabe muito bem de onde veio. As cuecas azuis são para dar sorte. Se vestir uma peça de roupa amarela é para resolver problemas económicos. O vermelho simboliza sucesso no amor e o branco é para quem procura a paz. “São cores vivas que simbolizam a alegria de renascer”, acrescenta o sociólogo Moisés Espírito Santo.
Haja barulho, muito barulho
Seja na aldeia mais remota de Portugal ou na capital, há sempre alguém a fazer barulho com tachos e panelas. Esta celebração da chegada do novo ano é um dos rituais mais antigos e universais. O antropólogo Francisco Vaz Silva dá dois exemplos. “Sempre que havia um eclipse, o ritual mais comum era fazer barulho para afastar o perigo. Isto muito antes da chegada dos romanos à Península Ibérica. E não acontecia só na Europa. Fazer barulho é um acto purificador, de afastar os perigos. Essa tradição via-se por exemplo no século XIX, quando um viúvo casava com uma jovem. Era um casamento mal visto por isso, as pessoas batiam com panelas e faziam barulho.”
Brindar com álcool, nunca com água
Champanhe ou espumante? É esta a escolha que vai ter de fazer no dia 31. Mas por que é que é tão importante brindar com álcool? “Tem a ver com uma ideia muito arcaica de que o álcool traz vitalidade e saúde. Desde que o álcool foi descoberto que simboliza a vida. Uma renovação das forças. Sempre que se bebia as pessoas ficavam num estado de excitação e alegria muito grande. Logo quando brindamos temos de o fazer com o que dá vida – álcool”, explica o antropólogo Francisco Vaz Silva.
Saltar de uma cadeira com o pé direito
A superstição de saltar da cadeira com o pé direito no novo ano não tem uma origem precisa, mas é fácil entender a razão desta mania. “Subir para a cadeira acaba por simbolizar a passagem entre um dia e outro, um ano e outro. A pessoa coloca-se entre o céu e a terra e o salto com o pé direito é o mesmo que entrar com o pé direito na soleira da porta – significa boa sorte. Desde que se celebra a passagem do ano que se acredita que o que se faz nessa noite vai influenciar o resto do ano. Este é mais um exemplo”, diz
Francisco Vaz Silva.
Atirar coisas velhas pela janela dá sorte
A historiadora e jornalista Helena Matos ficou surpresa quando na sua pesquisa para a série da RTP “Conta-me como foi” (passada nos anos 60) encontrou muitas referências a um problema lisboeta: lixo atirado pelas janelas. “As pessoas atiravam coisas velhas pela janela na noite de ano novo. Pratos, panelas, ia tudo. Havia muitos apelos da polícia para que as pessoas não o fizessem.” O sociólogo Moisés Espírito Santo recorda-se bem dessa tradição e explica que faz parte do ritual de deixar tudo o que é velho para trás. “Guardavam-se coisas velhas durante o ano e nessa noite atirava-se tudo pela janela. Era um costume que levantava alguns problemas à câmara, mas era um rito de renovação.”
Mergulhar no mar
Os corajosos gostam de simbolizar a entrada no ano com um sacrifício digno dos Astecas. Em pleno Janeiro entrar num mar gelado, com ondas é um teste à resistência. “Um rito de passagem implica sempre um certo esforço. É uma prova de vida para demonstrar que resistem”, esclarece Moisés Espírito Santo. A ideia de água e banho sempre simbolizou vida e passagem entre mundos. Não nos podemos esquecer que no século XIX, muitas pessoas só tomavam banho quando nasciam e morriam (o cadáver era lavado para o funeral). “A água simbolizava a separação dos mundos”, defende o antropólogo Francisco Vaz Silva. O que significa ser no mar e não no rio? O investigador esclarece. “As ondas têm um movimento circular, que simboliza o ciclo da vida e do ano.”
As superstições deles...
Henrique Sá Pessoa, chefe
“O meu ritual acaba por ser trabalhar. Para um chef é talvez o dia mais movimentado do ano. Não tenho nenhuma superstição ou ritual. Abdico bem das passas. Muitas vezes esqueço-me. Mas há sempre tempo para um espumante e para telefonar à família.”
Teresa Caeiro, deputada
“Como sempre as doze passas, meio atrapalhada e pelo meio esqueço-me de todos os desejos que queria pedir. Nunca preparo bem a coisa. Devia fazer uma lista, assim não me enganava. No dia 1, uso sempre umas meias novas. É uma tradição incutida pelo meu avô que comprava-nos sempre um par de meias novas.” Porquê? “Não sei. Tradição.”
Fernando Alvim, radialista
“Não tenho nenhuma tradição especial. Fumo sempre doze passas e parto uma cadeira. Quanto ao resto, ano sim ano não, corro sempre todo nu pela ponte 25 de Abril.”
Rui Horta, coreógrafo
“Não tenho nenhum ritual a não ser comer as passas e ter uma boa garrafa de champanhe. Não uso roupa nova, nem salto de cadeiras. Gosto de ter um momento mais íntimo de reflexão sobre o ano que passou e pensar no que gostava de ter no ano seguinte.”
Elisabete Jacinto, piloto
“Lembro-me que a minha mãe me oferecia cuecas azuis para dar sorte, mas não aderi ao ritual. Como as 12 passas e concentro-me nos votos de ano novo. Este ano não sei como vai ser, porque estarei num acampamento em Marrocos. Mas fico bem sem as passas.”
Victor Espadinha, actor
“Faço sempre a festa no Casino do Estoril. Como as passas, bebo champanhe e ponho-me sempre em cima de uma cadeira para saltar.” Com o pé direito? “Não. Simplesmente salto. Uso sempre uma peça de roupa nova e beijo a minha família.”
Lili Caneças, socialite
“A minha mãe era pianista e tinha uma veia muito criativa, por isso sempre tive esses rituais todos. Punha-me em cima de uma cadeira e saltava com o pé direito para dar sorte. Comia as 12 passas ao som das badaladas. E nunca me esqueço do ditado inglês: ‘Something red, something new, something old, something blue'. Ou seja, sempre uma peça vermelha, muitas vezes um baton, um vestido azul noite ou então lingerie azul e uma peça de roupa nova. A roupa velha é que é mais difícil de arranjar (risos). Cumpro sempre estas tradições e nunca me dei mal.”
Sofia Grilo, actriz
“Por acaso tenho rituais, mas não ligo muito à passagem de ano. Como as passas, sem dar grande carga aos desejos. Subo para cima de qualquer coisa e salto com o pé direito. No dia 1, uso sempre uma peça de roupa nova. Lembro-me que a minha avó me comprava sempre umas meias azuis para esse dia. Nesse dia faço um balanço do ano.”
Via Ionline