As roulotes de Lisboa
As rulotes são quase uma instituição, acarinhada ao longo dos anos à custa de muitos couratos e bifanas acabadinhas de assar. No entanto, hoje, correm o risco de desaparecer de Lisboa. A Câmara já não cede licenças para o negócio e tem vindo a deslocar as que resistem para lugares mais sombrios da cidade. Por isso, se quer um prego especial comido em pé, como deve ser, apresse-se, não vão elas desaparecer de vez.
Via iOnline
1. Praça de Espanha
Junto ao lugar vazio deixado pelo antigo Teatro Aberto, António Gomes, de 40 anos, serve hambúrgueres, pita shoarma, bifanas, pregos e cachorros, regados a cerveja para muitos e a refrigerantes para outros.
Manuel Antunes, de muita disponibilidade e poucos dentes, conta, num passo trôpego, que esta é "a melhor rulote de Lisboa". "Aqui sinto-me bem, é limpo, muito limpo e ele [António] é um amigo. Venho cá todos os dias." Manuel é empregado de limpeza urbana da câmara e um dos muitos clientes que ali param.
António Gomes, conhecido por Mané, nem ele sabe porquê, estacionou na Praça de Espanha há 10 anos, vindo directamente do Saldanha, onde as rulotes deixaram de ser bem-vindas. Mas desde 1988 que António faz das sandes um modo de vida, uma herança da sogra, Palmira Andrade Tereso, conhecida como Xepa, figura proeminente da noite lisboeta no que se refere a bifanas e pregos ao ar livre. Pioneira das rulotes, deixou o negócio ao genro e aprendiz, que lhe segue os passos com desvelo de filho. Das 23h às 6h, António enche as barrigas de toda a espécie de clientes, desde taxistas a "malta nova que vem da noite". Mas nem todos vêm pela comida ou pela cerveja: há quem faça da rulote um balcão de bar e dos empregados confidentes fiéis: "Há clientes que vêm cá para desabafar e contar-me os problemas que têm em casa. Sentem-se sozinhos e vêm só para conversar um bocado e beber qualquer coisa."
2. Sete Rios
Protegida pela chuva, mesmo em frente ao Jardim Zoológico, a rulote da Loira concorre com o Pançudo das Bifanas. A loira é quem toma conta do estaminé, onde são servidos hambúrgueres, cachorros e pita shoarma ao som de forró brasileiro. Estacionada na 24 de Julho durante 3 anos, o nome Rulote da Loira pegou e tornou-se oficial. A mudança para Sete Rios não a preocupou, já que "90% dos clientes são brasileiros que vêm cá de propósito comer, porque já conhecem" e ali, debaixo do viaduto, "a chuva não atrapalha".
Para além dos hambúrgueres do costume, há um, para os mais difíceis de satisfazer, capaz de encher o estômago em duas dentadas. Chama-se hamburgão, custa €4 e leva queijo, cebola, alface - e até aí tudo normal - milho, cogumelos, ananás, cenoura e, espante-se, ervilhas. Mas não se preocupe porque tem direito a um garfo, para que nada se perca entre dentadas.
3. Campo Grande
Aqui existem duas rulotes. Uma vive com problemas de estacionamento e não dá a cara, a outra, anima a clientela com um techno comercial, cortesia da rádio Cidade. Chama-se Snack Fora de Horas Bar e há 15 anos que dá de comer a quem quiser pagar €3,50 por um hambúrguer ou €5 por uma pita shoarma de picanha, especialidade da casa. Para quem a noite - das 22h às 6h - é sempre uma criança, há whisky a €2,50, ginjinha e vinho da Madeira, para lá da cerveja.
Há 15 anos que Casimiro Amorim, de 38, se deita por volta das 8h e dorme o dia todo, até serem horas de abrir a rulote. Andar ao contrário do resto das pessoas não lhe faz confusão e o contacto com a clientela agrada-lhe. Mesmo que os copos a mais exaltem a convivência "nunca ninguém perdeu o respeito."
4. Docas
João Ferreira era empregado de mesa mas um dia decidiu mandar tudo às urtigas, arranjar um sócio e dedicar-se às rulotes. "Gosto da noite e gosto de estar aqui." Aos 59 anos, tem 18 de hambúrgueres, bifanas e afins, servidas todos os dias "faça chuva ou faça sol, feriados e dias santos". Durante a semana vende entremeada e couratos na Av. Gago Coutinho, a uma clientela "de bairro, taxistas e toda a malta que trabalha à noite". Ao fim-de-semana, e desde há dois meses, que estaciona nas Docas, depois de "terem tirado as rulotes da 24 de Julho", diz com uma mágoa mal disfarçada. "A 24 era uma avenida onde havia gente, era movimentada, graças às rulotes, e estava bem guardada. Agora o pessoal não pára, as pessoas têm medo de andar na rua e está tudo vazio." E continua: "As rulotes juntam muita malta e aos bares não prejudica, até ajuda." Fala de avental posto, enquanto corta tiras de carne na chapa, "para ter tudo preparado quando os clientes começarem a chegar". "Se Deus quiser, já não deve demorar muito."
5. Santa Apolónia
De costas viradas para a discoteca mais in de Lisboa, o Lux, a rulote de Santa Apolónia dá comida e bebida aos foliões e oferece uma espécie de consolo aos sem-abrigo que vivem nas imediações.
O dono, António Rego, é homem de poucas palavras e pior ouvido, agravado pela música aos berros saída de uma aparelhagem que já viu melhores dias. Maria, a mulher, vais despachando cervejas e hambúrgueres para um grupo de italianos que não parecem saber porque é que foram parar ali. Das 22h às 6h, todos os dias, desde há 15 anos, António e a mulher mantêm a rulote aberta, um oásis na noite numa zona onde não há mais nada que encha a barriga. E gaba-se: "Há gente que vem de longe só para vir comer aqui."
A clientela é feita dos frequentadores da discoteca e de trabalhadores nocturnos, como polícias, bombeiros e taxistas. E se algum cliente habitual, cujos passos e palavras lhe saem trocados, se lembra de incomodar alguém, António é firme: "Olha lá, tu porta-te bem, ouviste?"