Deixo aqui um texto escrito por Cecílio Gomes da Silva no “Diário de Notícias” da Madeira. Engenheiro silvicultor. Madeirense. Não foi escrita agora esta premonição. Foi escrita a 13 de Janeiro de 1985, já lá vão 25 anos. Não resulta de nenhuma revelação, mas do conhecimento técnico de quem o escreve.
Daniel Oliveira
“Eu tive um sonho”
Cecílio Gomes da Silva
“Traumatizado pelo estado de desertificação das serras do interior da Ilha da
Madeira, muito especialmente da região a Norte do Funchal e que constitui as
bacias hidrográficas das três ribeiras que confluem para o Funchal,
dando-lhe aquela fisiografia de perfeito anfiteatro, aliado a recordações da
infância passada junto à margem de uma das mais torrenciais dessas ribeiras
- a de Santa Luzia – o mundo dos meus sonhos é frequentemente tomado por
pesadelos sempre ligados às enxurradas invernais e infernais dessa ribeira.
Tive um sonho.
Continuar a ler no link em baixo
Adormecendo ao som do vento e da chuva fustigando o arvoredo do exemplar
Bairro dos Olivais Sul onde resido, subia a escadaria do Pico das Pedras,
sobranceiro ao Funchal. Nuvens negras apareceram a Sudoeste da cidade,
fazendo desaparecer o largo e profundo horizonte, ligando o mar ao céu.
Acompanhavam-me dois dos meus irmãos – memórias do tempo da Juventude – em
que nós, depois do almoço, íamos a pé, subindo a Ribeira de Santa Luzia e
trepando até à Alegria por alturas da Fundoa, até ao Pico das Pedras,
Esteias e Pico Escalvado. Mas no sonho, a meio da escadaria de lascas de
pedra, o vento fez-nos parar, obrigando-nos a agarrarmo-nos a uns pinheiros
que ladeavam a pequena levada que corria ao lado da escadaria. Lembro-me que
corria água em supetões, devido ao grande declive, como nesses velhos
tempos. De repente, tudo escureceu. Cordas de água desabaram sobre toda a
paisagem que desaparecia rapidamente à nossa volta. O tempo passava e um
ruído ensurdecedor, semelhante a uma trovoada, enchia todo o espaço. Quanto
durou, é difícil calcular em sonhos. Repentinamente, como começou, tudo
parou; as nuvens dissiparam-se, o vento amainou e a luz voltou. Só o ruído
continuava cada vez mais cavo e assustador. Olhei para o Sul e qualquer
coisa de terrível, dantesco e caótico se me deparou. A Ribeira de Santa
Luzia, a Ribeira de S. João e a Ribeira de João Gomes eram três grandes
rios, monstruosamente caudalosos e arrasadores. De onde me encontrava via-os
transformarem-se numa só torrente de lama, pedras e detritos de toda a
ordem. A Ribeira de Santa Luzia, bloqueada por alturas da Ponte Nova – um
elevado monturo de pedras, plantas, arames e toda a ordem de entulho fez de
tampão ao reduzido canal formado pelas muralhas da Rua 31 de Janeiro e da
Rua 5 de Outubro – galgou para um e outro lado em ondas alterosas vermelho
acastanhadas, arrasando todos os quarteirões entre a Rua dos Ferreiros na
margem direita e a Rua das Hortas na margem esquerda. As águas
efervescentes, engrossando cada vez mais em montanhas de vagas espessas,
tudo cobriram até à Sé – único edifício de pé. Toda a velha baixa tinha
desaparecido debaixo de um fervedouro de água e lama. A Ribeira de João
Gomes quase não saiu do seu leito até alturas do Campo da Barca; aí, porém,
chocando com as águas vindas da Ribeira de Santa Luzia, soltou pela margem
esquerda formando um vasto leito que ia desaguar no Campo Almirante Reis
junto ao Forte de S. Tiago. A Ribeira de S. João, interrompida por alturas
da Cabouqueira fez da Rua da Carreira o seu novo leito que, transbordando,
tudo arrasou até à Avenida Arriaga. Um tumultuoso lençol espumante de lama
ia dos pés do Infante D. Henrique à muralha do Forte de S. Tiago. O mar em
fúria disputava a terra com as ribeiras. Recordo-me de ver três ilhas no
meio daquele turbilhão imenso: o Palácio de S. Lourenço, A torre da Sé e a
fortaleza de S. Tiago. Tudo o mais tinha desaparecido – só água lamacenta em
turbilhões devastadores.
Acordei encharcado. Não era água, mas suor. Não consegui voltar a adormecer.
Acordado o resto da noite por tremenda insónia, resolvi arborizar toda a
serra que forma as bacias dessas ribeiras. Continuei a sonhar, desta vez
acordado. Quase materializei a imaginação; via-me por aquelas chapas nuas e
erosionadas, com batalhões de homens, mulheres e máquinas, semeando urze e
louro, plantando castanheiros, nogueiras, pau-branco e vinháticos;
corrigindo as barrocas com pequenas barragens de correcção torrencial,
canalizando talvegues, desobstruindo canais. E vi a serra verdejante; a água
cristalina deslizar lentamente pelos relvados, saltitando pelos córregos
enchendo levadas. Voltei a ouvir os cantares dolentes dos regantes pelos
socalcos ubérrimos das vertentes. Foram dois sonhos. Nenhum deles era real;
felizmente para o primeiro; infelizmente para o segundo.
Oxalá que nunca se diga que sou profeta. Mas as condições para a
concretização do pesadelo existem em grau mais do que suficiente.
Os grandes aluviões são cíclicos na Madeira. Basta lembrar o da Ribeira da
Madalena e mais recentemente o da Ribeira de Machico. Aqui, porém, já não é
uma ribeira, mas três, qualquer delas com bacias hidrográficas mais amplas e
totalmente desarborizadas. Os canais de dejecção praticamente não existem
nestas ribeiras e os cones de dejecção etão a níveis mais elevados do que a
baixa da cidade. As margens estão obstruídas por vegetação e nalguns troços
estão cobertas por arames e trepadeiras. Agradável à vista mas preocupante
se as águas as atingirem. Estão criadas todas as condições, a montante e a
jusante para uma tragédia de dimensões imprevisíveis (só em sonhos).
Não sei como me classificaria Freud se ouvisse este sonho. Apenas posso
afirmar sem necessidade de demonstrações matemáticas que 1 mais 1 são 2, com
ou sem computador. O que me deprime, porém, é pensar que o segundo sonho é
menos provável de acontecer do que o primeiro.”
Dei o alarme – pensem nele”
Via Arrastão