Síndrome de Tourette. A doença que provoca tiques e obriga a dizer palavrões
Aos quatro anos, um tique cola-se à mente de Hugo com a teimosia de uma pastilha elástica: alheio aos gritos à sua volta, só consegue parar de pressionar com força os indicadores contra as têmporas quando cai, roxo, no chão. Passa dias inteiros a bater com as costas nos assentos, a baloiçar-se para cá e para lá, em movimentos autistas que cansam até quem olha. Aos seis, enquanto caminha pelas ruas, "chichi" e "cocó" são duas palavras que lhe explodem da boca, repentinas, incontroláveis, fora de contexto. Pelo meio, tosse como os cães, canta como os galos, grunhe como os porcos. Os pais, ao lado, sabem que não vale a pena recriminá-lo e não sabem o que dizer a quem olha de boca aberta, mais chocado que curioso. Aos oito, a casa torna-se palco de uma festa de aniversário: Hugo passa o dia a correr para o espelho da casa de banho para "cumprir os rituais" - afundar os dedos na garganta, até tocar num ponto que só ele conhece. "Sentia que tinha de ouvir um barulhinho cá dentro", conta.
Hugo fazia tudo isso sem poder atribuir um nome aos seus sintomas. Só aos 26, por intermédio da Associação Raríssimas - Associação de Doenças Raras -, o diagnóstico certo chegou: síndrome de Gilles de La Tourette. E associado à síndrome transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). A combinação é pesada e explosiva: doença neurológica rara, ainda sem cura, caracterizada por tiques abruptos e involuntários, misturada com obsessões incontroláveis e persistentes.
Mas Hugo e os pais sentem-se aliviados: por fim conseguem nomear a doença que descontrolava a família e levava, inclusivamente, os vizinhos a chamarem a polícia. "Tudo parecia mais simples. Já podíamos explicar que o nosso filho agia assim porque tinha uma doença rara", diz a mãe, Celeste Pires.
Até chegar o diagnóstico, Hugo e os pais passaram anos em médicos, psicólogos, pedopsiquiatras, bruxos e curandeiros. Dos consultórios, o habitual era saírem com um diagnóstico errado ou com uma receita de uma valente dose de calmantes. Alguns sugeriam que devia ser "coisa de espíritos" e os pais, exaustos, já só queriam ter alguma coisa em que acreditar. Em seis meses gastaram mil contos (5 mil euros) numa bruxa no Alentejo. Sem resultados.
Hugo continuava a bater em si próprio, a fazer caretas, a grunhir, a dizer "chichi" e "cocó" no meio das frases e a vocalizar coisas sem sentido. Na escola era o "Hugolóide". "Ninguém acreditava que não conseguia controlar aqueles gestos repentinos", lembra Hugo, circunspecto, ombros curvados, corpo cheio de vergonha a reclamar que não olhem para ele. Não conseguiu terminar o 9.o ano e tentou trabalhar num supermercado. Como saía constantemente do lugar para ir à casa de banho e enterrar os dedos na garganta, foi despedido passados dois meses. E as coisas pioraram.
Hugo entrou em depressão, afundou- -se no álcool. O irmão mais velho "recusava-se a sair com ele com medo que os amigos o envergonhassem", queixava- -se de que já não conseguia dormir porque o irmão grunhia ou fazia barulhos ainda mais estranhos pela noite dentro. A mãe tinha medo de o acordar: "Pensei tantas vezes que quanto mais ele dormisse mais descansados ficávamos todos..." O pai, certa vez, enervou-se e bateu-lhe no meio de uma crise. "Nada o fazia parar", confessa o pai, Domingos, rosto pesado de vergonha e culpa.
Estavam decididos: era impossível continuar assim, o melhor era Hugo ser internado. E foi. Até ao dia em que os pais chegaram à clínica e sentiram: "Se não o tiramos daqui agora, ele vai morrer." Hoje, aos 30 anos, Hugo toma seis medicamentos e já consegue passar meses sem manifestações visíveis da síndrome.
Palavrões no cinema M. nunca soube o que é dar banho ou pegar ao colo na filha de três anos e meio. "Já a magoei uma vez e à minha mulher também, porque a síndrome não dorme durante a noite e às vezes surge um ou outro espasmo mais violento." Aos três anos começou a ter os primeiros movimentos espásmicos dos membros, ainda não muito brutos. Os professores do colégio pensavam que seriam "manifestações de sobredotado, diziam que esperasse, que iam passar". Até que as manifestações se intensificaram e "se tornaram impeditivas de certas actividades". M. começou a isolar-se: fugia dos jogos da cabra-cega com os colegas e lia Kafka nos intervalos. "Sentia-me posto de parte por ter tiques que ninguém sabia o que eram, nem sequer eu", recorda, com a frieza e a naturalidade de quem hoje é capaz de brincar com a doença. "Percebo que as pessoas riam. Até a mim me dá vontade de rir quando vejo alguém com esta patologia."
Aos 13 conheceu finalmente o diagnóstico: síndrome de Tourette. Tal como Hugo, sentiu-se feliz. "As pessoas já me podiam pôr um carimbo."
Aos 34 anos, licenciado em Física Quântica em Londres e ex-assistente na universidade, sente-se condenado a uma reforma por invalidez. "Imagine o que é alguém com estes tiques ir bater às portas à procura de emprego. Impossível!" Há dois anos, a última empresa para a qual trabalhou convidou-o "a meter baixa". Tinha, à data, praticamente todas as manifestações da síndrome: dos tiques motores às palavras obscenas. "Conviver com isto em permanência, de manhã à noite, deixa uma pessoa desesperada. Os meus colegas ficavam assustados e eu não podia condená-los."
M. fala da doença com a naturalidade de quem não se lembra de viver de outra maneira. E garante que o pior é a "dimensão social de uma doença que não se consegue esconder". Na escola, de cada vez que chegava um professor substituto, já sabia que dali viria um processo disciplinar. Os tumultos e as zaragatas provocados pela reacções dos outros aos seus tiques chegaram ao cinema. Acabou com a polícia à porta do Mundial, em Lisboa, com uma espectadora furiosa que se queixava de ter sido ofendida: M. não tinha conseguido parar de gritar asneiras e as piores obscenidades na sala.
Alto, de fato, cabeça rapada e olhos claros, M. é um daqueles homens que dificilmente passam despercebidos. Diz estar numa "fase calma" da doença, mas, enquanto fala, os tiques e os impulsos continuam lá: limpa a garganta, funga como se estivesse constipado, levanta os ombros, agita os braços, atira a perna como se fosse dar um chuto no vazio. Ao fim do dia, o cocktail explosivo de 15 medicamentos - que inclui psicotrópicos e neurolépticos - não atenua as dores que se apoderam do corpo. Sente-se exausto, como se tivesse corrido mil maratonas. E nem sequer saiu do sofá.
Via ionline