![Cristiano Ronaldo]()
Não houve remontada como em 1966 nem um goleador como Eusébio, sobrou a atitude de 11 jogadores ao nível dos Magriços. No Cabo, onde ninguém tinha passado do empate em partidas do Mundial, Portugal cilindrou a Coreia do Norte (7-0) com uma segunda parte de sonho e quase conseguiu dobrar a maior diferença de golos de sempre em fases finais (4-0 à Polónia, em 2002). Meireles pintou um aviso na muralha asiática, Simão abriu um túnel e depois foi marcar, marcar, marcar, marcar e marcar. Até Ronaldo quebrou o jejum. Agora só uma catástrofe (Costa do Marfim recuperar nove golos) impedirá a passagem aos oitavos-de-final. Mas há esperança de passar em primeiro, caso se consiga vencer o Brasil.
Os jogadores nacionais ouviram o hino com fumos negros em homenagem a Saramago e, desde cedo, foram tentando encontrar versões para escrever a primeira vitória no Mundial. Com o passar dos minutos e das oportunidades, até podia chegar ao número de cantos de "Os Lusíadas", a obra de Camões que recorda a passagem portuguesa aqui pelo Cabo. A Coreia do Norte não jogou tão fechada como era expectável e, após uma bola ao poste de Ricardo Carvalho - o central de 32 anos que tem fama de vaidoso mas parece um miúdo só de 20 -, tentou esticar-se no campo como uma equipa grande. E Eduardo, enquanto Portugal ia criando (e falhando) várias bolas de golo, teve de fazer intervenções com alguma dificuldade. Sentia-se o choque entre razão e emoção, entre pragmatismo e tecnicismo, entre futebol asiático e latino. Até que Meireles, qual profeta, pintou o primeiro de muitos graffiti na tal muralha norte-coreana. "Não sei o que me deu mas eu nem sou de aparecer na zona do ponta-de-lança. Senti alguma coisa que me dizia para subir e fiz golo", diz o médio portista no anúncio. Foi assim na Bósnia, foi assim no Cabo. E estava dobrado o maior dos trabalhos portugueses.
Os norte-coreanos, uma formação de homens esforçados e orientados por uma disciplina quase doentia (nunca fazem faltas e marcam-nas sem excepção no local exacto onde foi a infracção), sentiram o peso da desvantagem e começaram a abrir brechas. Chovia no estádio e notavam-se as primeiras gotas de desilusão a transbordar para lá da muralha.
Veio o descanso. Quinze minutos de intervalo. Portugal recarregou as baterias, a Coreia do Norte perdeu-as. E os 11 que entraram em campo pareciam uns meros actores dos artistas da primeira parte, à semelhança dos que apoiavam a equipa na bancada (pagos, claro). Tiago assustou, Miguel complicou (pisão desnecessário em Tae Se), Simão marcou - depois da pintura na muralha, um túnel para o caminho dos golos. O barulho dos espectadores a bater com os pés nos degraus em plena euforia mais parecia o último canto de um adversário a desfazer-se em erros próprios. Portugal jogava a dois ou três toques, os centrais deixaram de existir, Coentrão transformou-se num extremo. Avalanche completa - Hugo Almeida aproveitou mais uma grande arrancada do lateral benfiquista para aumentar a vantagem, Tiago fez o 4-0. A única Guerra Fria possível de imaginar era mesmo a do tempo. Os holofotes ligaram-se mas o sol apareceu. E faltava meia hora...
Faltava o golo de Cristiano Ronaldo e, de quando em vez, notava-se a intenção dos outros dez marinheiros ajudarem o maior navegador de todos. O barco nacional, que pareceu um cargueiro frente à Costa do Marfim mas tornou-se num iate de luxo com os asiáticos, seguia de vento em popa mas o penúltimo disparo do canhão CR7 bateu na trave. E o craque suspirou, suspirou... Liedson, que tinha entrado, cumpriu a tradição de marcar no estádio talismã (o da Luz, que se não fosse a cor das cadeiras era bem parecido com o... Green Point) e meteu-se ainda na luta por uma bola perdida a três minutos do fim, ganhou o ressalto e deixou Ronaldo brilhar - a bola quase prendeu na cabeça do madeirense, desceu e, enquanto pontapeava para uma baliza deserta, ainda houve tempo para soltar um desabafo (impronunciável) e sorrir. Foram os dois segundos mais importantes para acabar com uma seca de quase dois anos. Tudo acabado. Ou não: Tiago quis ser diferente e, quando já havia pessoas a saírem do estádio com os abdominais doridos de tanto levanta-senta- -levanta, o médio fez o bis. O 7-0 quase dobra o anterior recorde (4-0 com a Polónia, em 2002). E agora é escolher a cidade dos oitavos: Joanesburgo ou... Cabo.
Via Ionline