Dentro da cabeça de Carlos Silvino
Não admite que lhe chamem pedófilo. Nem homossexual. Sequer bissexual. Carlos Silvino diz que gosta de mulheres. Crescidas. Aos peritos que traçaram o seu perfil, desdobrou-se em informações sobre uma ex-namorada. “Era só à quinta-feira que fazia amor com ela, porque a religião dela não permitia. [...] Para me satisfazer, ia duas ou três vezes a Monsanto, à prostituição.”
Chamava-se Isaura. E o então motorista da Casa Pia não compreendia aquela restrição semanal que ela lhe impunha: “Só soube que ela era da religião Maná quando ela me levantou dinheiro da conta.”
Só este namoro seria consistente no discurso sobre a heterossexualidade de Silvino. No resto, hesitava. “Com frequência”, dava “informações diferentes em momentos diferentes.” Os peritos ficaram com a sensação que procurava uma resposta a cada pergunta.
Não era assim quando falava na sua “colaboração” com os rapazes que terão prestado serviços sexuais fora da Casa Pia – uma “colaboração” que acabou por negar numa entrevista publicada no dia 26 na Focus. Não se contradizia ao referir “quando, onde, como, para junto de quem” os terá transportado. Reproduzia “quase o mesmo em momentos diferentes”. E tendia a ser “minucioso”. Distendia-se “amplo, escorreito, seguro de si e das suas afirmações”.
Com o sexo feminino era diferente. Com o sexo feminino era de uma incoerência que os peritos classificam de “exuberante”.
Foi ouvido em 2008 na Unidade Funcional de Psiquiatria e Psicologia Forense do Hospital Magalhães Lemos, na fronteira do Porto com Matosinhos, a 2 e a 15 de Abril, a 7 e a 12 de Maio, a 2 de Junho – a pedido das Varas Criminais de Lisboa, a que cabia avaliar o depoimento do acusado de 634 crimes.
Numa primeira conversa, revelou ter tido relações sexuais com uma rapariga pela primeira vez em Braga. Namorara “um ano e tal” com ela. Teria passado “dois ou três fins-de-semana” em casa dela. A distância falara mais alto. E ela trocara-o por “um rapaz da aldeia”.
Nesse mesmo dia, contou 24 namoradas. E falou na tal da Igreja Maná com quem estivera três anos.
Noutra sessão, assegurou ter vivido com 12 mulheres. Disse o nome delas todas. Enumerou 12 portuguesas e uma francesa, que não entraria na estatística por ter sido um amor de férias. Ainda naquele dia, corrigiu o tiro. Namorara com 13 e vivera “com duas ou três”.
Numa terceira ocasião, declarou ter tido relações sexuais pela primeira vez com uma rapariga em Viseu. Afinal, tivera 12 namoradas. E só morara com uma por volta dos seus 42-44 anos, a tal da Igreja Maná, porque “queria avançar, ter família, ter filhos”. Ela nunca quis.
Talvez o homem de 53 anos confunda homossexualidade com pedofilia. Ainda agora, com o jornalista da Focus, falou como se acreditasse que praticar sexo com mulheres o ilibasse de abusar de crianças: “Disse em tribunal e digo outra vez. Não sou pedófilo, não sou homossexual, nem predador sexual. Sou heterossexual e algumas raparigas com quem tive relações foram ao tribunal para confirmar isso, mas nem sequer foram ouvidas. Não sei porquê.”
Violado na infância
Quem é o homem que a Polícia Judiciária deteve a 25 de Novembro de 2002, sob suspeita de servir uma rede de prostituição infanto-juvenil, e que o país conheceu de cabelo rente e blusão vermelho? Há alguma resposta precisa, após os mais de 20 testes de avaliação psicológica a que foi sujeito?
Silvino identificou o seu advogado, a mãe adoptiva, os ex-colegas da Casa Pia, o psiquiatra, o médico de família e três amigos como as pessoas que mais lhe davam apoio. E os peritos perceberam que lhe custava estabelecer “relações personalizadas, íntimas, de conhecimento aprofundado”.
Quando lhe perguntaram pelos amigos íntimos, respondeu, “de modo empolgado”: “Amigos do peito, todos os trabalhadores da Casa Pia menos o Américo. Trabalhadores, professores, do internato, semi-internato, contínuos, porteiros, telefonistas, motoristas, directores, vizinhos da Rua Serpa Pinto, da rua dos Jerónimos, pessoas do Alentejo, imigrantes, pais de alunos…”Não era um psicopata. Mas, a avaliar pelos resultados da escala de Alexitimia, Silvino tinha “grande dificuldade” de “identificar, diferenciar, descrever e lidar com sentimentos e emoções”.
Os alexitímicos têm um “pensamento operatório” que se torna evidente quando narram a sua história de vida. “O relato tende a ser feito por referência à realidade externa, numa enumeração sucessiva de datas e de lugares, estando ausente qualquer referência a uma realidade interior, qualquer marca de uma vivência subjectiva e personalizada”, detalham os especialistas. Isto descamba em relações “utilitárias e pragmáticas”. Quem não percebe o outro como alguém com uma individualidade própria, quem não percebe os sentimentos em si e nos outros tem escassa capacidade de empatia e de compreensão humana.
Há quem chame “normopatas” a estes indivíduos, que, “apesar de profundamente perturbados, não exibem manifestações psicológicas ou neuróticas”. Será, em qualquer caso, sublinham os peritos, uma pseudonormalidade, “já que têm pouco contacto com a sua realidade psíquica”.
O que aconteceu a Silvino? Não imaginava quem fosse o pai. Nem sabia se era mãe a mulher que o entregara bebé à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Afiançava lembrar-se da transferência para a Casa Pia de Xabregas: “[Havia] um muro muito alto toda à volta. Um dos portões, o portão principal, tinha uma arcada feita de ferro de onde não entrava nem saía ninguém.” Teria três a quatro anos.
Num instante terá sido violado: “Foi no quarto do educador. Nós dormíamos com camisa, sem cuecas, numa camarata de cem alunos. Ficava um educador a cuidar de nós. Foi no quarto dele. Ele vinha, punha-nos um lenço na cabeça para nos tapar a boca e os olhos, amarrava-nos as mãos e os pulsos e levava-nos para o quarto. Íamos pendurados com as mãos atrás.”
Em qualquer noite as violações podiam acontecer umas atrás das outras: “Da primeira vez, o educador foi o primeiro a violar-me. Depois, foi outro educador e dois monitores.” Os monitores eram alunos mais velhos.
Os abusos ter-se-ão repetido até aos seus 13 anos e quatro meses. Teria cinco ou seis anos, quando se queixou ao chefe de disciplina pela primeira vez. Outros rapazes ter-se-ão queixado na mesma ocasião: “Éramos chicoteados pelo chefe de disciplina. Quando chegávamos à rampa, éramos agredidos pelos alunos mais velhos que nos tinham violado.”
Ao contar aquilo, mostrou a cicatriz de um corte de canivete na mão esquerda. E cicatrizes na testa e no nariz. Tudo supostas consequências de denúncias. Uma vez, “com raiva”, terá cortado um pé com um vidro. “Recebi dois pontapés na cara quando cheguei do hospital.”
Pensamentos sobre morte
Tentou fugir. Ele e outros miúdos, que lhe eram próximos: “[O Pestana] era o meu par. Dormia ao meu lado e, quando saíamos para o refeitório, dávamos a mão um ao outro, o Ginja ao Vítor Manuel e assim sucessivamente.” A fuga inaugural durou pouco: “Andámos quatro dias na rua. Andávamos a pedir para comer uma sopa.” Aos sete, tornou a tentar: “Andámos duas semanas cá fora. Foi aí que parti a perna e no dia seguinte voltámos.” Aos nove, nova tentativa: “Comíamos na Mitra.”
A vida tornara-se ainda mais azeda. Contaria sete anos, quando prestou o primeiro serviço sexual no exterior. “Fui com (…) um senhor rico, importante, do Governo de Marcelo Caetano. Vivia em Alvalade. Nunca me deu nada. Depois, levou-me à Casa Pia, deixou-me no portão.”
Haveria sexo entre rapazes. Silvino afiança nunca o ter feito com os que lhe eram próximos. Nem sequer com Pestana. E os peritos reflectiram: talvez para eles tudo se passasse “como se ao sexo estivesse associada a noção de abuso, de agressão, de desprezo”. Como se a relação deles “fosse demasiado pura para ser conspurcada pelo sexo”.Ia nos 13 anos quando fugiu pela última vez da Casa Pia. Terá andado com os outros um mês e meio pelo Martim Moniz, pela Avenida da Liberdade, Monsanto. O regresso trouxe novas agressões. Tantas que Silvino fugiu sozinho uns dias. Pensou em atirar-se ao rio, em pôr fim à vida.
Nada, ali, o protegia: “Tratavam-nos por números. O meu era o 226… 56, 63 – 226 era o número da Casa Pia, 56 era o ano de nascimento, 63 o ano de registo.” E o castigo ameaçava a cada passo: “Se nos atrasássemos para a comida, já não comíamos carne ou peixe. Água quente para o banho não havia. Quem perdesse a escova de dentes, a pasta ou o pente ficava de joelhos, de braços abertos, toda a noite.”
Crescia por sua conta. Por melhores que fossem as empregadas, não as sentia como família. “Não tive carinho e amor. Só tive algum das senhoras da costura. Não tinha familiares para me irem visitar.” Havia um motorista de pesados que encarava como referência. E por volta dos 12 ganhou uma espécie de mãe: Mariana, ex-aluna, funcionária.
A escola passava-lhe ao lado. Frequentou-a dos seis aos 16 para concluir a 4.ª classe. “[Os professores consideravam-me] um bocado atrasado, sem cabeça para os estudos. Tive dificuldades de aprendizagem. Era distraído. Repeti muitas vezes. Fiquei traumatizado. Com o que me estava a acontecer, não tinha cabeça para aprender. E tínhamos falta de apoio.”
Os vigilantes não se empenhariam na sua assiduidade: “Não havia pressa para ir à escola. Ia sozinho, com o Vítor Manuel e o Pestana. Chegávamos muitas vezes atrasados e não nos deixavam entrar.” Às vezes, nem lá punha os pés: “[Fugia] porque andava com fome e porque era maltratado.”
Nunca aprendeu trabalho diferenciado. Passou pela carpintaria sem dominar a arte. Carregou batatas, lavou louça, limpou camaratas. E aos 18 puseram-no na rua: “Senti-me um pouco triste.” Valeu-lhe Mariana, que há muito o levava para casa ao fim-de-semana. Acolheu-o até aos 30 anos.
Silvino viveu num quarto alugado até se instalar “numa casa, nuns terrenos da Casa Pia”. E por lá se manteve até lhe ser atribuída uma casa municipal, da qual saiu para os calaboiços da PJ.
Não, não estava preso quando foi avaliado no Magalhães Lemos – fora libertado a 25 de Novembro de 2005 por excesso de prisão preventiva. Mas nem por isso se sentia bem. Na escala de auto-avaliação da ansiedade de Zung, pontuou 74 – a média é 31,6. Na escala de auto-avaliação da depressão de Zung, pontuou 69 – de 44 para cima já é grave. Na escala de psicopatologia SCL-90-R, deu positivo em 85 de 90 sintomas – de maior intensidade eram as queixas sobre perturbação do sono e pensamentos sobre morte.
Apto a depor
A situação era tão grave que os peritos previam que, “episodicamente”, pudesse ocorrer “comprometimento das funções do juízo”. O pensamento podia ser “fragmentado, tangencial ou circunstancial, com conteúdos invulgares, senão bizarros”. Podiam aparecer problemas de concentração e de memória, medos, fobias, afectos inapropriados. Já lhe notavam uma “ideação paranóide” – a pessoa julga que os outros a perseguem, a querem prejudicar -, quiçá sobrevalorizada pelo eternizar do processo da Casa Pia.
O julgamento arrastava-se. Seria um dos mais longos da história judicial portuguesa – haveria de somar 461 sessões (ouvidas 920 testemunhas, 32 vítimas). E isso não o ajudava a pacificar. Mas sim: apesar do quadro clínico, apesar das limitações intelectuais (um quociente de 79 não consubstancia qualquer atraso, mas está na fronteira), Silvino estava apto a depor.
Havia uma longa história de aluno. E havia uma longa história de funcionário. Mariana arranjara-lhe trabalho na Casa Pia em meados dos anos 80. Acusado de abuso sexual, chegara a ser alvo de processo disciplinar, de despedimento, de contacto com menores. Fora reintegrado. E, volvidos tantos anos, estava ali, enrolado no mais mediático processo de abuso de menores.Contestou “homossexualidade pedófila”. Admitiu apenas uma vez, em Março 2002, ter tido contactos sexuais com alunos: “Não foram obrigados. Foi masturbação, sexo oral. Dava-lhes dinheiro para comprarem bolos.” Argumentou que antes do processo nem pensava ter um problema sexual. Os peritos deduziram que evitava auto-incriminar-se perante o tribunal – que haveria de condená-lo a 18 anos de prisão por 126 crimes de abuso sexual de menores dependentes, abuso sexual de pessoa internada, violação, pornografia de menores.
A história era importante. Crescera num instituição, “com vínculos insuficientes”, e “consequente propensão para alguma dependência, imaturidade, insegurança no estar consigo e com o outro”. Nunca ter tido um vínculo forte “provoca uma aridez interna, um vazio, onde será mais difícil existir espaço para o outro, para uma relação adulta recíproca e saudavelmente partilhada”. E esse “vazio potencia um deambular promíscuo, sem vínculos, eventualmente pedófilo”.
Crescera a aprender “que a dominação do corpo pode passar pela invasão carnal do outro”. E, nestes casos, amiúde, o mimetismo acontece: “Se outros mo fizeram, porque não poderei eu fazer o mesmo? A inerente desculpabilização (interna) e razoável egossintonia instala-se: se este processo provoca sofrimento, que importa tal? Porque serão os outros mais do que eu próprio? Se eu fui vítima de abuso, porque não poderão os outros sê-lo também?”
Tirando as fugas episódicas, vivera o abuso com alguma passividade. Não agredir era sobreviver. E a “agressividade contida”, lembravam os peritos, pode ser devolvida ao meio, anos mais tarde, já na adolescência ou na vida adulta. Sobretudo, se nesse meio a caça for “fértil”. E se ter sido sodomizado e sodomizar for encarado “como prática comum”.
“Algo imaturo”
Que não haja equívocos. Este tipo de pessoas é capaz de aprender as regras da vida em sociedade. Podem vestir a pele de simpáticos, disponíveis, integrados. Há, contudo, “uma ambiguidade que não lhes permite integrar de um modo suficientemente culpabilizador e egodistónico, repulsivo as diferenças de comportamento sexual com uma criança ou com um adulto”.
Silvino descreveu-se “como uma pessoa de palavra e de bom trato interpessoal”: “Praticamente, nunca estive zangado com ninguém, só com esse tal Américo.” O professor de relojoaria que o denunciava havia anos. Aos peritos pareceu evidente que se preocupava “em agradar aos outros” – que terá “orientado a vida com esse tipo de preocupação”.
Pergunte-se uma última vez: quem é, afinal, Silvino? Os peritos responderam assim: “A personalidade do observado exibe timidez, dependência, tendência a preocupações com a saúde, sentimentos de vergonha e preocupação com a estima do outro (…), baixa auto-estima. O imaginário do sujeito parece-nos pobre, inibido, imbuído de uma certa aridez afectiva que não permite um investimento num par adulto, mas antes se distribui (algo imaturamente) por múltiplos outros. O observado não nos transmite a imagem de um ser adulto maduro que preza, sobretudo, a sua liberdade (também de caçar sexualmente), mas antes um indivíduo efectivamente algo imaturo, deambulando (sexualmente) pelas oportunidades que vai arranjando, num movimento inacabado, insuficientemente impregnado de afecto, estima e consideração pelo outro (como também não foi por ele próprio, enquanto vítima). Num multiplicador de consumismo (sexual) em que conta o orgasmo (próprio) e muito menos, ou nada, o outro. Transmite-nos a impressão que devolve, no plano sexual, sem angústia, a indiferença que mostraram por ele próprio enquanto criança.”No fecho do relatório, uma certeza: “O percurso deste homem poderia ser completamente diferente, se tivesse sido criado num outro meio (eventualmente não estaria sentado agora a ser julgado, acusado de pedofilia). Responder que, de certeza, não estaria nesta posição de réu e acusado destes crimes é impossível. Mas que a responsabilidade da instituição Casa Pia, do Estado, da sociedade é imensa parece não restarem quaisquer dúvidas.”
A sentença foi lida a 13 de Setembro de 2010, após quase seis anos de julgamento. No acórdão de 1760 páginas, o colectivo de juízes da 8.º Vara salienta que “teve de compreender, entender e observar a pessoa que teve na sua frente”. Convenceu-se de que Silvino contou “a história de forma incompleta”, ao dizer que apenas dera boleia aos rapazes para os encontros e ao negar contactos com outros arguidos. Entendeu, mesmo assim, que nalgumas situações ele não deixou de dar elementos que, “em conjugação com os demais meios de prova”, permitissem chegar “à sua real responsabilidade”.
Uma pesada pena pende sobre Silvino. À Focus lamentou: “Eu perdi o meu emprego, perdi o pão de cada dia, não tenho dinheiro, nem família.” Negou “colaboração” com os rapazes: “Fui obrigado a mentir. Estava sempre drogado.” E disse que queria pedir desculpa aos outros arguidos pelo depoimento que prestou em tribunal. Ambiciona processar alguns deles e algumas das pessoas que deram a cara pelas vítimas. E ambiciona processar o Estado – quer uma indemnização “por todo o sofrimento”. Quando a revista chegou às bancas, terá pegado nalgumas coisas e desaparecido nas ruas. Teme pela sua segurança. Já anunciou que pedirá protecção policial mal lhe seja atribuído apoio judiciário para o processo que está em recurso no Tribunal da Relação de Lisboa.
Ana Cristina Pereira
Público
05/02/11