O mundo que ainda reconhece na 'moral' de Homer, Marge e criançada um resquício de bom senso e a América 'deles' que raras vezes esteve tão dividida como agora, dificilmente celebrarão juntos o 20º aniversário da mais afamada série de animação da saga da televisão. Os puristas (que o rol e timbre de 'simpsonistas' é de calibre maçónico) dirão que os Simpson deviam soprar 22 velas, já que se estrearam como tirada cómica em 1987 no The Tracey Ullman Show, uma série que servia para apresentar aos 'States' a histriónica comediante inglesa e que hoje é lembrada à conta da família de Springfield. Mesmo assim, são muitas as razões para fazer a festa.
Uma cidade chamada SpringfieldDiferentes cidades norte-americanas se chamam Springfield. A dos Simpson é inventada e usa o nome como contraponto. Este 'campo primaveril' é encimado pela fumarada de uma central nuclear. Homer é o inspector responsável pela segurança, mas é raro vê-lo fora da confortável cadeira durante as horas de serviço. O melhor lugar sentado é no bar do amigo Moe a emborcar umas cervejas ou no sofá lá de casa a fazer mais do mesmo. Três anos depois do desastre de Chernobyl, o Sr. Simpson bem podia ser visto como a pior contratação da temporada. Marge, a que se vê e deseja para fazer de mais-que-tudo aos olhos do marido, é a torre cimeira do castelo familiar, a começar pela dimensão do seu penteado, azul e vertical à exaustão. Estica como pode o salário de Homer e guarda para si, como migalhas, os sonhos de uma felicidade alternativa. A mais se atreveu este ano, posando nua para a capa da revista "Playboy", sob a sombra balofa e espreitadora do mais-que-tudo. Ama os filhos sem condições, mesmo quando eles são uma colecção de desapontamentos.
O influente BartO desalento maior, o menino Bart, ainda hoje passa por ser a mais popular das personagens da série. Tem bom fundo, só que é quase impossível trazê-lo à superfície. Tem muitas máximas, a começar por fazer sempre o mínimo e um lema único com formato de pergunta: "Se faço maldades e ninguém está lá para ver, isso não fará de mim um bom rapaz?" É um traquinas amador à beira da mais profissional das malfeitorias e fez-se dotar de uma energia tão nuclear quanto a central onde o pai trabalha e que tolda os ares de Springfield e a sobrevivência da sua massa assalariada. Para ele, ser solidário é acertar com algo sólido na cabeça de alguém e sair a rir da contenda. A revista "Time" colocou-o em 1999 na lista das 100 personalidades mais influentes do século XX...
Lisa, a puraLisa, a irmã, é o seu papel químico do avesso. Ingénua até mais não, simboliza o consenso universal de que a pureza tem uma cor, que a dita é verde e que o verde significa falta de experiência, o que na América passa pelo oitavo pecado capital sempre que é confundido com inocência. Defende o ambiente, os mais desfavorecidos, os menos reconhecidos e até os que acham que a vida é 'assim-assim'. Passados 20 anos, ainda não foi mais longe do que ver em Springfield um planeta. Há-de fazer-se à vida, quando a mesada chegar para alugar um 'híbrido'. Maggie ainda não largou a chupeta e falou uma vez para dizer 'paizinho'. Distraído, Homer não deu por isso. Começa a suspeitar estar rodeada de doidos, mas terá de esperar pela pré-primária para confirmar se há alternativas credíveis.
Uma energia inesgotávelDuas décadas de vida em programa com nome próprio não foram suficientes para encontrar uma linha comum (nem mesmo uma intersecção) face ao significado dos Simpson. Sabemos quem são, mas o que são e ao que vêm? A controvérsia (que o passar dos anos não só não deu por terminada como fez questão de mudar de polemistas) abarca todas as áreas que dividem a América, da religião à forma ideal de governo, das bodas ainda por desfazer entre oportunidade e oportunismo à sonhadora e enlevada crença no optimismo enquanto sistema político em si mesmo.
Os Simpson têm a energia suficiente para cair nas malhas do seu próprio anedotário só para não terem de se retirar. Na verdade, essa é uma ideia que passa pela cabeça de poucos. Está tudo nos conformes, desde que essa Springfield que se vai fazendo do tamanho do mundo acredite que aquela família tem um apego peculiar à verdade. Matt Groening, o seu criador, dá o tom: "São precisos dois para mentir... um para mentir e outro para ouvir."
É claro que há verdades que de tão aberrantes só funcionam de pernas para o ar e enquanto mimos grotescos, como aquela que diz: "Meninos, vocês tentaram e falharam miseravelmente. A lição a aprender é esta: nunca tentem." Ou o famoso "nunca digas alguma coisa a não ser que toda a gente pense o mesmo". Até sobre a própria condição de empacotado produto televisivo, há sempre um dito de Groening que mesmo na boca de Homer soa bem: "A TV respeita-me. Ela ri-se comigo e não se ri de mim."
Mas num país onde a fé religiosa tornada questiúncula atinge proporções avassaladoras, cabem ao 'patriarca' da prole as tiradas de 'abrir ouvidos'. Algumas pérolas? "Não estaremos a esquecer o verdadeiro significado do Natal? Sabem, o nascimento do Pai Natal?", ou "porque é que devo gastar metade do meu domingo na missa a ouvir sermões sobre o modo como vou acabar no Inferno?", e já agora "eu nunca fui um homem de rezar muito, mas se me estás a ouvir aí em cima, por favor salva-me, Super-Homem". E esta ainda, emocionado ao olhar uma estrela cadente: "Gostava que Deus estivesse vivo para ver isto"...
Família às esquerdasNo ano 2000, a "National Review" julgava ter acertado em cheio e impresso na pedra o verdadeiro toque dos Simpson: "Eles personificam alguns dos melhores princípios conservadores, como o primado da família ou o cepticismo em relação à autoridade política. E em Springfield, os cidadãos vão à missa todos os domingos." Só que os membros da prole são tão diferentes entre si que os democratas bem podiam ter uma revista 'sua' a dizer o mesmo, mas ao contrário. Há quem veja os Simpson como uma família às esquerdas, que acredite que não haveria Homer sem Archie Bunker, que faz falta um terceiro animal numa nação que ostenta como símbolos das propostas de governo um burro e um elefante. O perigo, já se adivinha, é que se sobrevalorizem os ditos dos Simpson como se de um ideário se tratasse. E não há nada como um aniversário para encontrar argumentos para tanto. Como Groening avisou na série: "Os factos não têm significado. Até podemos usar factos para provar seja o que for que seja remotamente verdade..."
Matt sopra as velas com a energia de quem se diverte a disparatar para todos os lados, ao ponto de, inevitavelmente, acertar em cheio no alvo. Enquanto vai gerindo o multimilionário negócio de merchandise, não pára de desenhar e escrever. Os famosos deste mundo e do outro fazem fila para dar as suas próprias vozes ao programa, vendo na série a versão norte-americana dos baixos-relevos egípcios, com a vantagem de poderem escolher o seu melhor perfil, e Groening goza, pondo na boca da família que inventou o elogio maior ao meio que lhe fez a fortuna: "Televisão! A minha professora, mãe e amante secreta." E, na verdade, não tem de que se queixar. Passados 20 anos, só descansa para trabalhar em "Futurama", o seu 'filho mais novo'.
Ter razão é bom"Vou dizê-lo de forma curta e de uma só vez. Família, religião e amizade: estes são os três demónios que temos de matar se queremos ser bem sucedidos nos negócios." Matt escreveu a piada mas nunca teve de matar fosse o que fosse. Celebra as duas décadas de vida da mais influente das famílias de animação com a convicção de que o que há de palavroso, absurdo, tonto e impulsivo em cada um de nós é a mesma energia que vem dos Simpson: ter razão é bom, mas há coisas na vida que têm muito mais graça.