A história do Coelho
Durante grande parte da sua história, o coelho-europeu, ou coelho-comum, viveu apenas na Península Ibérica e no Sul de França. Hoje está espalhado por quase todos os cantos da Terra, tanto a sua forma selvagem como a doméstica. Mas onde e quando começou a domesticação do coelho? Duas hipóteses têm sido avançadas: tudo terá começado com os romanos na Península Ibérica, há cerca de dois mil anos, ou então terá sido há 1400 anos numa região que actualmente integra o Sul de França e os monges tiveram um papel principal. A equipa de Nuno Ferrand de Almeida, coordenador do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (Cibio) da Universidade do Porto, acaba de dar a resposta: foi nos mosteiros da Provença.
O coelho-europeu, ou Oryctolagus cuniculus, o nome científico da espécie, surgiu na Península Ibérica há cerca de dois milhões de anos e é caçado pelos humanos como alimento há milhares de anos. Tem duas subespécies, que no pico da última glaciação, há 20 mil anos, ficaram confinadas a dois refúgios: enquanto a Oryctolagus cuniculus cuniculushabitava em França e no Nordeste da Península Ibérica, a Oryctolagus cuniculus algirus vivia no Sudoeste da Península Ibérica, incluindo o Sul de Portugal.
O primeiro registo que nos chegou da abundância do coelho no Sul da Península Ibérica é dos fenícios, quando vieram até às suas costas há três mil anos, para trocas comerciais. "Viram milhares de coelhos, que confundiram com o damão-do-cabo, que era abundante nas costas das cidades fenícias", conta Nuno Ferrand de Almeida. "Esse registo poderá estar na origem do nome Espanha, que quererá dizer "terra de coelhos": a designação de "i-shephan-im", ou terra de damões-do-cabo, que na verdade eram os coelhos, seria depois latinizada para dar Hispânia, e mais tarde Espanha."
Quando voltavam para sua terra, no Médio Oriente, os fenícios levavam com eles o coelho e espalharam-no pela bacia do Mediterrâneo, por exemplo pelas ilhas Baleares e pelo Norte de África.
Mais tarde vieram os romanos, que se instalaram durante séculos na Península Ibérica, e também levaram o coelho para outras paragens na Europa. "A primeira tentativa de controlar a reprodução do coelho terá ocorrido na Península Ibérica, um século antes de Cristo", conta o biólogo Miguel Carneiro, também do Cibio, e autor principal do artigo com esta descoberta, publicado este mês na edição online da revista britânica Molecular Biology and Evolution.
A partir da ocupação romana passa a haver múltiplas referências aos coelhos. "Uma das mais célebres é a de Plínio, o Velho, na sua História Natural, no primeiro século da nossa era, onde já se refere o hábito de consumir fetos dos coelhos, bem como o facto de produzirem imensos prejuízos na agricultura. Também durante Adriano, um dos mais célebres imperadores romanos - imortalizado por Marguerite Yourcenar em Memórias de Adriano -, circulavam na península moedas com coelhos cunhados na sua face", acrescenta Ferrand de Almeida. "A partir dessa altura há referências permanentes a estruturas belíssimas chamadas "leporaria", que eram cercados feitos de pedras onde os coelhos eram mantidos para serem usados na caça e na alimentação. Há muitos vestígios arqueológicos dessas estruturas. Esta seria uma das hipóteses para a domesticação do coelho ter ocorrido na Península Ibérica."
Carne que não é carne
No entanto, outros registos históricos sugeriam que a domesticação tinha ocorrido mais tarde, por volta do ano 600, nos mosteiros da Provença. A fundamentar esta suposição encontra-se uma decisão do papa Gregório I, que tinha sido monge beneditino, em que considera que os fetos e as crias recém-nascidas de coelho não eram carne, pelo que podiam comer-se durante o jejum da Quaresma. E assim a criação de coelhos difundiu-se nos mosteiros da Provença. "Há muitíssimos documentos históricos que atestam a frequente troca de coelhos entre abadias, e mesmo com países como a Inglaterra. Este processo poderia ter levado à domesticação do coelho e seria uma hipótese de domesticação realizada fora da península, proveniente das populações selvagens do Sul de França", refere Ferrand de Almeida. Tenham sido os romanos ou os monges da Provença, os sinais claros da domesticação do coelho só surgiram muito mais tarde, a partir de meados do século XV. Em iluminuras e pinturas, começaram a aparecer os primeiros coelhos com cores diferentes, desde brancos a avermelhados, em vez da cor parda dos selvagens.
Um dos quadros mais célebres que representa um coelho branco é de Ticiano, Madona e Menino com Santa Catarina, também conhecido como A Virgem do Coelho, de cerca de 1530, que está no Museu do Louvre. "Esses mutantes de cor poderão corresponder a um processo de domesticação já terminado. E a partir daí o coelho doméstico difundiu-se por todo o mundo e teve um sucesso enorme", explica Ferrand de Almeida.
No século XVI, há registos de coelhos de vários tamanhos e cores em França, Itália, Flandres ou Inglaterra, o que sugere que a sua domesticação estava já concluída nessa altura.
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