Alice Brito: Eu sei ,,....
Eu sei.
Sei da menina de Olinda, de nove anos e trinta quilos, reiteradamente violada pelo padrasto, grávida de gémeos.
Sei do empenho posto pela Igreja para tentar impedir o aborto, apesar de a criança correr grave perigo de vida. Os médicos e a mãe foram excomungados. O violador foi apenas censurado.
Eu sei.
Sei dos 498 padres espanhóis que beatificaste, e sei que ao fazê-lo passavas enternecidamente as mãos pelo lombo do franquismo e emprestavas oxigénio à direita, que agora se prepara para crucificar Baltazar Garzón.
Eu sei.
Sei do levantamento da excomunhão a Williamson, bispo negacionista, branqueador do nazismo, "compagnon" de todos os que, todos dias, tentam embargar, vilipendiar, encapotar, uma das páginas mais vergonhosas da História da humanidade.
Eu sei.
Sei dos discursos homofóbicos e da condenação do divórcio, como se o céu só se ganhasse se se frequentasse o Inferno na terra; como se a graça só se alcançasse através da dor e sofrimento, prescindindo-se da vida.
Eu sei.
Sei do silêncio, da ocultação, da cumplicidade, da indiferença e, sobretudo, da crueldade de todos os crimes perpetrados por múltiplos e variados membros da Igreja.
Sei do encobrimento das denúncias das perversidades, pressinto a gritaria calada de todas as vítimas a estourar de aflição em noites de insónias, intuo o peso das memórias fantasmas que insistem em colar-se à pele.
Eu sei. Sabemos todos.
Mesmo aqueles e aquelas que se passeiam no glamour das recepções papais, e antes se passearam no glamour das recepções oficiais a abarrotar de cultura laica.
Todos sabemos de tudo, sendo que o tudo é demasiado grave para que tudo se esqueça. Principalmente nestes dias em que a crise parece adiada e os católicos parecem anjos imaculados.
Alice Brito