Cabo Verde, A arte de fazer muito com pouco e a procura de vida melhor
A capacidade de fazer muito com pouco está bem personificada em Elias. Na lata rectangular vertical de azeite que transformou em panela, já negra de muitas idas ao lume, vai pondo pequeníssimas porções de batata inglesa, cebola, cenoura, pimentão, coentros, salsa.
Como se de mestre cozinheiro se tratasse, acrescenta peixe que lhe deram no mercado, cem escudos de azeite comprado, um pouco de calda de tomate, um dente de alho, sal e um pouco de água para refogar. Mais tarde há-de juntar-lhe arroz. No areal da baía do Mindelo, à sombra de uma espinheira, vista deslumbrante sobre a vizinha ilha de Santo Antão, paredes meias com o luxuoso complexo turístico Ponto d’Água, ganha forma o arroz malandro que há-de ser para Elias a única refeição certa do dia.
Ar de menino dócil, ninguém diria que este “badio”, como chamam aos naturais de Santiago, era na mais tenra infância, vivida na Cidade da Praia, conhecido pelo nominho de “Arnold”, de Arnold Schwarzneger, pelo seu carácter brigão. É pelo menos o que conta Elias. A briga é agora pelo sustento diário. “À noite posso tomar uma sandes ou se não tiver dinheiro, vou deitar assim.”
As quantidades mínimas de ingredientes do almoço foram-lhes oferecidas, a ele e ao amigo Hernâni, pelas vendedoras de verduras. “Para nós dão”, explica. Afinal, Elias, 17 anos, é para elas um parceiro: vende na rua sacos de repolho, tomate, pepino, abóbora, pimentão, batata doce, mandioca ou feijão verde. Cada um a cem escudos cabo-verdianos, 80 para elas, 20 para ele. É com esse dinheiro, e com os 200 escudos que recebe quando lava algum carro, que paga o azeite e o arroz. E come por vezes um prato de cachupa e uma caneca de café que lhe custam 150.
Reunidos os ingredientes, há que procurar lenha. Acaba por conseguir pedaços desperdiçados de barrotes das obras de distribuição de água e saneamento que uma empresa italiana está a fazer na cidade com financiamento da União Europeia. E avança com a preparação do almoço. Para ele e para Hernâni, 19 anos mas ainda mais ar de criança, filho do Monte Sossego, a trabalhar no mar “desde pequenotinho”, como explica Elias, traduzindo o falar crioulo do companheiro.
Rede familiar
O espírito de iniciativa dos cabo-verdianos é igualmente bem visível no popular mercado de Sucupira, na Cidade da Praia. O caso de Isilda, que estava de novo ontem no grande mercado popular da capital, mostra-o bem.
As couves e o repolho que tem à venda são daqui mesmo, de Santiago, e o sal que a 50 escudos o saco de litro mandou-o vir da ilha a que deu nome. O resto do que tem espalhado sobre a bancada metálica e as caixas de madeira - abóbora, batata doce e cebola terra – vem, tal como o carvão, que ontem não tinha para vender, de barco da mais fértil Ilha de Maio, onde nasceu há 49 anos e ano após ano volta. Foi-lhe mandado por familiares e amigos, que também ganham com este circuito informal de distribuição.
Isilda Oliveira explica que o negócio da maior parte dos cabo-verdianos que vieram de outras ilhas e vendem no Sucupira “é mais roupa”. Produtos da terra, garante, só os de Santiago e ela. Essa foi a forma que arranjou de aproveitar o potencial agrícola que não tinha escoamento na sua ilha e de com ele abrir perspectivas para si e para os seis filhos que deu ao mundo. Foi por isso que se mudou em 1986, partindo, como há gerações os cabo-verdianos fazem, para outras ilhas ou para fora do país. “Lá é bom para agricultura, mas produtos não tem saída. Cá a vida é melhor. Aqui em Santiago dá mais.” Na capital viviam, segundo estimativas oficiais de 2008, quase um terço do meio milhão de pessoas que constituíam a população cabo-verdiana.
Via Publico