Sexo está na cabeça
Lara Crespo, 39 anos, sempre soube que "qualquer coisa" não estava bem consigo. Mas só aos 25 anos, quando viu uma entrevista com Roberta Close (uma famosa transexual brasileira) percebeu. "Identificava-me com cada palavra e pensei ''espera lá, é isto mesmo que sou'' só não sabia era verbalizar".
Os diplomas do governo e do Bloco de Esquerda que querem simplificar a mudança de sexo e nome próprio no registo civil a quem tenha sido diagnosticada, clinicamente, uma mudança da identidade de género (transexualidade) serão hoje discutidos e viabilizados no parlamento. Deixará de ser preciso recorrer aos tribunais, um "processo longo e humilhante", garante o presidente da ILGA, (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero), Paulo Côrte-Real.
"A Aurora nunca fala de assuntos relacionados com mulheres, como decoração, culinária e moda", lê-se numa sentença do Tribunal Judicial de Almada, em 2006, apresentada pela ILGA para demonstrar que os requisitos habituais dos tribunais violam os direitos humanos. Em cinco anos, apenas 16 transexuais foram a tribunal mudar de sexo e de nome. Lara diz que será uma das primeiras a ir à conservatória.
"Não vou estar exposta ao meu passado. Vou deixar de dar explicações a toda a gente. É tão simples quanto isto. Acho que não estou a pedir muito", defende Júlia Pereira, 20 anos. Acabada de entrar na universidade, Júlia prefere não dizer o curso que frequenta. Diz que por agora tem tido a compreensão dos professores mas "nunca se sabe": "Explicar caso a caso torna-se humilhante." E lembra uma oportunidade de emprego em que foi recusada, num supermercado, porque os seus documentos não condiziam com a aparência e era exigido ter o nome numa "plaquinha" na lapela.
Também Lara garante que está no desemprego por causa da questão do nome: "Sei que está muito difícil para toda a gente mas ainda mais para nós. Recusaram-me muitos empregos por a minha imagem não corresponder ao papel. Muitas vezes me disseram que o currículo era bom mas que eu não correspondia ao perfil".
Nem governo, nem Bloco de Esquerda requerem a obrigatoriedade da cirurgia para a mudança de sexo e nome no Bilhete de Identidade. Basta "apresentar um relatório elaborado por equipa clínica multidisciplinar de sexologia clínica que comprove o respectivo diagnóstico", lê--se na proposta do governo. Já o Bloco exige que o "requerente tenha estado, ou esteja há pelo menos um ano, em tratamento hormonal destinado a ajustar as suas características físicas às correspondentes ao sexo agora reclamado" e que "viva, há pelo menos dois anos, no sexo social reclamado". A omissão da cirurgia tem levantado objecções à direita. Paulo Côrte-Real lembra que existem pessoas transexuais que não desejam ou não podem, por questões de saúde, efectuar uma cirurgia genital.
"O sexo não está no meio das nossas pernas, está na nossa cabeça", diz Lara. "Os mais conservadores têm de aprender a ver além do nosso corpo." Para Júlia - que também é coordenadora do GRIT (Grupo de Reflexão e Intervenção sobre Transexualidade) - a obrigação de submeter alguém a uma cirurgia é uma "violação dos direitos humanos". "Iríamos acabar com uma discriminação para acrescentar outra", acrescenta Lara.
O deputado do Bloco, José Soeiro, afirma que o projecto do partido foi baseado na Lei de Identidade de Género espanhola: "Recordo que em Espanha não houve nenhum voto contra, nem dos partidos à direita", disse ontem o deputado.
Hoje os partidos discutem os diplomas em plenário e vão ser viabilizados à esquerda, com o consentimento do PCP. Lara diz que esta alteração na lei vai mudar a sua vida e, principalmente, o seu dia-a-dia. "Fui fazer uma mamografia e qual não foi o espanto das pessoas quando chamaram um nome masculino. Ficou tudo a olhar para mim." Com a mudança, situações como esta deixarão de acontecer.