Quando começou a perceber o interesse da assistente, Jorge, um professor universitário então com 27 anos, resolveu abrir o jogo: "Há um problema, sou homossexual", confessou-lhe. Talvez com a esperança de que o "problema" fosse tratável, a mulher insistiu. As cedências de parte a parte resultaram, após seis meses de namoro, numa gravidez não planeada e no casamento. Vinte anos depois, com três filhos e várias traições pelo meio, veio o irremediável divórcio. Mas Jorge não voltou a ter mulheres. Afinal, parece que o "problema" era o mesmo. E não tinha cura.
No café, o professor agora com 51 anos espera por nós, incógnito. "Estou vestido de casaco castanho", avisa ao telefone. Embora assuma a sua homossexualidade, opta por não dar a cara na reportagem. Tem três filhos menores e não quer expô-los. O ponto de encontro é a Brasileira, café emblemático de Braga, cidade conhecida como a Roma portuguesa, conservadora e católica. Jorge atalha: "Pode ser conservadora, mas é também a cidade dos três P: dos padres, putas e paneleiros." Verdade ou mito, ele acaba a confessar os seus pecados: "Já namorei com três padres."
Um homem a mais Antes, muito antes disso, o professor viveu no interior do país. Foi para lá dar aulas na universidade, numa altura em que mantinha dois relacionamentos homossexuais. Ser gay nunca foi um problema - jamais o escondeu, apenas não gosta de empunhar essa bandeira.
"Foi um processo muito gradual, feito por etapas", explica. Aos 11 anos começou a perceber que as conversas sobre raparigas não lhe despertavam interesse. "Dava-me bem com elas e era até bastante popular, mas nunca passava disso, eram amigas", conta.
A popularidade da adolescência prolongou-se pela idade adulta, a ponto de despertar interesse na assistente com quem trabalhava na universidade, "uma mulher bonita e inteligente". Depois de se envolverem, ela engravidou. "Não lhe escondia nada, mas achamos por bem casar. Acreditei que seria possível compatibilizar a minha orientação sexual", conta Jorge. Nenhum dos dois foi feliz. Ele não venceu a sua natureza e as infidelidades constantes desgastaram a relação até à ruptura inevitável. "Se o teu relacionamento fosse com outra mulher, saberia que armas usar. Com um homem não posso competir", dizia-lhe a mulher. De facto nunca o conseguiu, apesar de terem tido mais dois filhos de gravidezes não planeadas.
Quase vinte anos volvidos sobre o casamento, e cinco após o divórcio, Jorge reconhece que hoje talvez não se tivesse casado. O que o levou a aguentar um casamento de 17 anos? A resposta é imediata: "Os filhos."
Verdade escondida A filha foi o preço que João Mouta, de 48 anos, pagou pela sua liberdade. "Há sempre um preço a pagar e o meu foi esse", lamenta o director de marketing de uma empresa ligada ao ramo automóvel. A batalha jurídica pelo poder paternal, feita de lágrimas e violência, empurrou-o para o activismo: é um dos dirigentes da Pais Para Sempre, uma associação de defesa dos interesses do pai. Hoje, diz, é muito mais fácil falar sobre homossexualidade. Não só falar, como ser. "Se formos autênticos, as pessoas respeitam-nos", garante.
Mas nem sempre foi assim. "Tive consciência disso aos cinco anos." No entanto, "a família, a sociedade e os valores estabelecidos levaram-me a reprimir a minha identidade". João Mouta namorou três anos e esteve casado durante oito. "A relação com a minha mulher foi--se deteriorando, e quando se consumou a separação fui viver com um homem."
O processo de divórcio arrastou-se durante vários anos. "Uma separação é sempre complicada, diz-se que o sentimento é o que mais se aproxima da morte de um familiar. No meu caso foi ainda mais difícil", diz, embora nunca tenha assumido perante a mulher que iria viver com um homem.
Mas o que o levou a embarcar num processo que sabia ser emocionalmente muito violento? "Há várias coisas: o desejo de ser autêntico e não ter de esconder mais, o desejo de ser feliz sem contingências, não lutar mais contra a sua própria natureza. Encontrar paz interior de alguma forma."
A estas razões, o psiquiatra Júlio Machado Vaz acrescenta o cansaço. "Já ouvi pessoas de 50 ou 60 anos confessarem--se exaustas, após uma vida de fingimento. Não dos afectos que as unem aos familiares, mas da verdade que (pres)sentem dentro de si", explica.
Lésbica ou mãe? Não foi o caso de Teresa, que descobriu a sua homossexualidade já adulta. E depois de se divorciar do marido, com quem tem dois filhos. "Sou muito distraída. Ignorei completamente todos os sinais, a forma como me relacionava com os rapazes, as brincadeiras, o jogar à bola e ao berlinde", conta. E bonecas? "Destruía-as, riscava-as, cortava-as, coitadas." Teresa esteve casada durante dez anos, sem nunca ter questionado a sua orientação sexual. Hoje, consegue olhar para trás e admitir que o interesse pela professora de Francês na secundária era afinal uma paixão de adolescente. "Foi por causa dela que escolhi esta profissão [professora]."
O episódio ficou por ali, e Teresa diz ter seguido o percurso tido como normal: "Na faculdade relacionei-me com rapazes. Em termos amorosos nunca deu grande resultado, mas ficavam sempre grandes amizades." Fartava-se rapidamente quando passava a fase da paixão. Foi assim com quase todas os relacionamentos, incluindo com o ex-marido.
A verdade chegou muitos anos depois, aos 36, após o divórcio. "Comecei a perceber que as mulheres eram muito mais bonitas e bem mais interessantes", lembra. "Essa é a grande dificuldade, olhar ao espelho e assumir." Teresa ouviu conselhos em associações de lésbicas e procurou informação necessária para pôr um ponto final às "questões existenciais" que a atormentavam. Mas sentiu na pele as consequências. Um dia, a educadora de infância da filha perguntou às crianças da sala "se queriam ser lésbicas ou mães". A conversa deixou marcas até hoje. "A minha filha diz que preferia que a mãe tivesse um homem, quer ser igual às outras." Hoje, partilha a casa com a companheira e os dois filhos.
Amor à primeira vista "Vi uma mulher e apaixonei-me por ela." Filipa, 55 anos, 30 dos quais casada, tem dois filhos adultos e viveu até há bem pouco tempo um romance com uma mulher. Garante que até há seis anos, altura em que conheceu a ex-companheira, nunca olhara para o sexo feminino com outro olhar que não fosse "amizade ou admiração". Tal como a maioria, não se deixa fotografar e recorre a um nome fictício. "Por respeito aos filhos", justifica. Quando conheceu - num consultório médico - a mulher com quem se viria a juntar, Filipa percebeu logo o que estava a acontecer. "Houve uma altura em que não pensava noutra coisa se não no dia em que teria a próxima consulta." Foram precisos 40 anos de vida para descobrir que afinal gostava de mulheres. Nunca teve o mínimo indício? "Não estou muito preocupada em encontrar respostas." Depois de se divorciar, Filipa juntou-se com a sua ex-companheira. Nunca disse à família que estava a viver um amor no feminino. Mas não se livrou da condenação de um dos filhos, que ainda hoje não lhe fala.
Para João Mouta, hoje estão criadas as condições para as pessoas "serem mais autênticas, sem pagarem um preço tão alto como antes". Por outro lado, há um paradigma geracional que ainda afecta muitos homens e mulheres escondidos no armário. É uma questão de coragem? "Não, é preciso ser inconsequente.
Via Ionline